Esta peça teatral foi escrita à tardinha em 28 de março de 2018, ao Clandestino Café e Música — é dedicada à artista espanhola
Marina López Fernández (
inconstancias tropicales, locuras del otro lado del mar: «Bienvenida a mi mente»).
Ambiente habitual que precede ao espetáculo de teatro. Murmurinhos na sala. Os funcionários do teatro deverão fechar as portas do teatro pontualmente às 20h32 (vinte horas e trinta e dois minutos [horário de Brasília {UTC–3}]). Depois, uma funcionária do teatro pressionará botão vermelho ao lado da porta do teatro: soará assim a campainha que anuncia o início do espetáculo de teatro. Os espectadores que não conseguirem entrar antes dessa campainha e antes de a porta fechar-se serão informados pelos funcionários do teatro, com muita cortesia e benevolência, atitude própria desses funcionários do teatro — escolhidos a dedo, como se diz, por uma empresa húngara especializada em treinar funcionários de teatro para eventos dessa magnitude — os espectadores atrasados, portanto, serão avisados educadamente de que lá dentro do teatro ocorre agora um espetáculo de teatro, a porta do teatro está fechada, a campainha que anuncia o início do espetáculo de teatro já foi tocada, e eles (os funcionários do teatro) sentem muito, mas eles (os espectadores que chegaram depois das 20h32) não poderão entrar. Os espectadores de teatro que chegaram antes das 20h32 e que estão agora sentados confortavelmente em cadeiras reclináveis podem observar com certo deleite a luz da sala diminuir de forma gradual. Surge no palco um senhor de paletó cinza, chapéu, aspecto de desleixo pessoal, um leve arrastar dos pés. Ele diz que antes do grande espetáculo da noite haverá um monólogo introdutório, dois ou três minutinhos, de um artista romeno que nunca falara uma palavra sequer em português mas que lerá o monólogo mesmo assim. O artista romeno entra e lê o monólogo desta maneira:
Uma hora gritamos e temos quem nos escute (pausa), uma hora gritamos, esperneamos, fazemos cena e temos, por assim dizer, uma plateia, alguém com muita paciência para nos ouvir a gritar, a espernear, a fazer cenas (pausa), até que de repente esse alguém perde a paciência e se vai e daí não há mais plateia, não temos mais com quem gritar. Ficamos sozinhos.
Os espectadores de teatro aplaudem esse brevíssimo monólogo introdutório lido por um artista romeno que nunca falara português, e comentam, de certeza muito espantados, sobre o fato de esse artista romeno ter lido tão bem o monólogo em língua portuguesa apesar de não saber falar português — pelo menos se ainda acreditarmos no senhor de paletó cinza, chapéu, que arrasta os pés; porque, quando ao teatro, nunca se sabe. A luz da sala ameniza-se um pouco mais. Entram no palco os dois oradores do chamado grande espetáculo da noite, são estes: Conserva de Aspargo (uma mulher vestida de conserva de aspargo) e Garrafa de Leite (um homem vestido de garrafa de leite).
CONSERVA DE ASPARGO
Tu falas as tuas falas
depois eu tenho mais munições
para falar as
minhas falas
GARRAFA DE LEITE
E qualquer coisa
é um começo
CONSERVA DE ASPARGO
Qualquer
coisa
GARRAFA DE LEITE
Um teatro livre
percebes
Teatro que constrói
para si próprio
uma lógica
uma metodologia
uma ambiência
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro esquizofrênico
teatro de vidas duplas
simultâneas
vidas que se contradizem
GARRAFA DE LEITE
Teatro impossível de encenar
impossível de se transformar em peça
Teatro surpreendente
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro torto
teatro que serve para
afligir
O teatro que não
aflige ninguém
e não contraria ninguém
não é um teatro
GARRAFA DE LEITE
É outra coisa
CONSERVA DE ASPARGO
Sim outra coisa
GARRAFA DE LEITE
Tu falas
eu penso
depois eu falo
tu pensas
percebes
CONSERVA DE ASPARGO
Percebo
GARRAFA DE LEITE
(Sem olhar para a plateia)
Introduzimos aqui
uma pequena observação
que chamamos de «teatro»
(Faz as aspas com os dedos, dificuldade para mover os braços por conta da fantasia de garrafa de leite)
o que quer dizer
simplesmente que
poderíamos passar sem
essa observação
Teatro
CONSERVA DE ASPARGO
Toda a gente sabe que
isto é lá um teatro
um teatro que se leva
no bolso
GARRAFA DE LEITE
No bolso
em vez de telemóvel
de bolso
teatro-de-bolso
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro-de-bolso
uma máquina para
encenar o que se vê
GARRAFA DE LEITE
E nem sempre o que
começa é bom
CONSERVA DE ASPARGO
Nem sempre
mas qualquer coisa
é um começo
GARRAFA DE LEITE
Tu falas
eu penso
eu falo
tu pensas
CONSERVA DE ASPARGO
Munições
para continuar
a falar
GARRAFA DE LEITE
E pensar
Naturalmente
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro livre
GARRAFA DE LEITE
Livre
CONSERVA DE ASPARGO
Garrafa de Leite
GARRAFA DE LEITE
Conserva de Aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Naturalmente
tu não és
uma garrafa
de leite
GARRAFA DE LEITE
Não
Não sou
trato-me de
um ser humano
CONSERVA DE ASPARGO
Certo
Ser humano
fantasiado de
garrafa de leite
GARRAFA DE LEITE
Correto
Fantasiado de
garrafa de leite
teatro livre
CONSERVA DE ASPARGO
E tampouco
eu cá sou
uma conserva
de aspargo
GARRAFA DE LEITE
Tu tampouco
és uma conserva
de aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Fantasia de conserva
de aspargo
por dentro
ser humaníssima
GARRAFA DE LEITE
Dieta unilateral
uma pessoa que alimenta
o seu pensamento
apenas com um gênero
de exemplos
CONSERVA DE ASPARGO
Vês
(Levanta a fantasia, mostra as pernas)
Humaníssima
de conserva
de aspargo
GARRAFA DE LEITE
(Chega perto, averigua)
Aspargo
com pernas
Sim
Humaníssima
CONSERVA DE ASPARGO
Tu não és uma garrafa
de leite
estou certa
GARRAFA DE LEITE
Mais certa impossível
Sou cá um homem
humano
CONSERVA DE ASPARGO
Mas
Suponhamos
GARRAFA DE LEITE
Sim
CONSERVA DE ASPARGO
Suponhamos
à guisa de recreio
Teatro livre
GARRAFA DE LEITE
Livre
Uma lógica
uma metodologia
Ambiência
CONSERVA DE ASPARGO
Suponhamos que
o universo
GARRAFA DE LEITE
O universo
sim
suponhamos
CONSERVA DE ASPARGO
Supercordas
Cosmos
inflacionário
paralelo
infinito
em todas
as direções
GARRAFA DE LEITE
Cosmos
inflacionário
Sagan
Einstein
Planck
Hawkins
Alan Guth
Suponhamos
CONSERVA DE ASPARGO
O universo
em colapso
o palco
este teatro
GARRAFA DE LEITE
Este teatro
CONSERVA DE ASPARGO
Este universo
Suponhamos
GARRAFA DE LEITE
Eu de leite
você de aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Exatamente
Como sabias
GARRAFA DE LEITE
Li o texto
está lá no roteiro
CONSERVA DE ASPARGO
Certo
tudo é semente
GARRAFA DE LEITE
Qualquer coisa é um
começo
CONSERVA DE ASPARGO
Então suponhamos
que se nós dois
só nós dois
universo
GARRAFA DE LEITE
Multiversos
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro de
vias duplas
GARRAFA DE LEITE
Vidas duplas
CONSERVA DE ASPARGO
Simultâneas
GARRAFA DE LEITE
Vias
barra
Vidas
que se contradizem
CONSERVA DE ASPARGO
Suponhamos que
se estivermos de acordo
eu
Conserva de Aspargo
tu
Garrafa de Leite
GARRAFA DE LEITE
Estou de
acordo
CONSERVA DE ASPARGO
Certo
Estamos de
acordo
GARRAFA DE LEITE
Estamos
CONSERVA DE ASPARGO
Então
O que achas
não passa a ser verdade
que eu
sou Conserva de Aspargos
e que tu
és Garrafa de Leite?
GARRAFA DE LEITE
Eu
Garrafa de Leite
tu
Conserva de Aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Passa a ser verdade
não passa
GARRAFA DE LEITE
Sim
Passa
Se estivermos de acordo
passa
CONSERVA DE ASPARGO
E até onde sei
estamos de
acordo
GARRAFA DE LEITE
Estamos
CONSERVA DE ASPARGO
Um teatro
impossível
percebes
GARRAFA DE LEITE
Mas se estamos
de acordo
torna-se
possível
CONSERVA DE ASPARGO
Sem atores
humanos
percebes
GARRAFA DE LEITE
Estou a perceber
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro feito por
Conserva de
Aspargo
GARRAFA DE LEITE
E Garrafa de Leite
passa a ser verdade
Estamos de acordo
CONSERVA DE ASPARGO
O teatro que não
incomoda que não
inquieta
que não contraria
não é um teatro
GARRAFA DE LEITE
Não é um teatro
Absolutamente
É lá outra coisa
CONSERVA DE ASPARGO
Outra coisa
Teatro feito por
Garrafa de Leite
e Conserva de Aspargo
GARRAFA DE LEITE
Bonito de se ver
CONSERVA DE ASPARGO
(Olha para o relógio)
Pois manda as minhas
lembranças à
senhora Garrafa
de Leite
GARRAFA DE LEITE
Mandá-las-ei
E manda as minhas
ao senhor Conserva
de Aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Não posso
GARRAFA DE LEITE
Como assim
não posso
por essa eu
não esperava
CONSERVA DE ASPARGO
Não
não esperava
não está no roteiro
GARRAFA DE LEITE
(Tira o roteiro de dentro da fantasia de garrafa de leite, lê o roteiro)
Não
Não está no roteiro
Teatro estranho
correr em redor
de uma circunferência
(Faz uma circunferência invisível no chão, corre em redor da circunferência invisível)
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro doido
Conserva de Aspargo
Caixa de Leite
Não está no roteiro
mas passa a ser verdade
GARRAFA DE LEITE
Por que não podes
mandar lembranças
o que se passou
com o senhor
Conserva
de Aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Morreu-se
GARRAFA DE LEITE
Morreu-se
CONSERVA DE ASPARGO
Sim
Suicídio
GARRAFA DE LEITE
Meus pêsames
CONSERVA DE ASPARGO
Não precisas
GARRAFA DE LEITE
De quê
CONSERVA DE ASPARGO
De pêsames
foi há muito
GARRAFA DE LEITE
O suicídio
CONSERVA DE ASPARGO
Sim
O suicídio
GARRAFA DE LEITE
Pena isso
CONSERVA DE ASPARGO
Superei
GARRAFA DE LEITE
Superaste
Conserva de
Aspargo
viúva
CONSERVA DE ASPARGO
Viuvinha
Superei
GARRAFA DE LEITE
Então
Não mandes lá
as minhas lembranças
ao senhor Conserva
de Aspargo
CONSERVA DE ASPARGO
Não mandarei
impossível
suicidou-se
GARRAFA DE LEITE
Que barra
CONSERVA DE ASPARGO
Superei
GARRAFA DE LEITE
(Pensativo)
Mas e à senhora
Garrafa de Leite
Continuo a mandar
as tuas lembranças
certo
CONSERVA DE ASPARGO
Pois não vejo motivo
para não mandares
GARRAFA DE LEITE
Teatro livre
CONSERVA DE ASPARGO
Justamente
GARRAFA DE LEITE
Mas temo cá pela simetria
do espetáculo
CONSERVA DE ASPARGO
Explica-te
Leite
GARRAFA DE LEITE
(Tenta colocar o indicador para os lábios, à moda filósofo, mas não consegue, a fantasia de garrafa de leite atrapalha)
Eu a mandar as
lembranças da
Conserva de Aspargo
à senhora Garrafa de Leite
mas Conserva de Aspargo
não manda lembranças
para ninguém
Percebes
CONSERVA DE ASPARGO
Percebo
Assimétrico
GARRAFA DE LEITE
Sim
O conceito é bem esse
Assimétrico
CONSERVA DE ASPARGO
Não mandes
então
as lembranças
GARRAFA DE LEITE
Sim
melhor assim
sem lembranças
De ambas as partes
CONSERVA DE ASPARGO
Inúmeras confusões
surgiriam dessa
terrível assimetria
GARRAFA DE LEITE
Inúmeras
CONSERVA DE ASPARGO
Senhora Garrafa
de Leite recebe as lembranças
da Conserva de Aspargo
Senhor Conserva
de Aspargo
não recebe lembranças de
Garrafa de Leite
Porque suicídio
Assimétrico
GARRAFA DE LEITE
Melhor não
CONSERVA DE ASPARGO
Teatro-de-bolso
Lembremos
Teatro-de-Bolso
GARRAFA DE LEITE
Simetrias
CONSERVA DE ASPARGO
Sem lembranças
portanto
GARRAFA DE LEITE
Pois não
(Cai o pano)
— P. R. Cunha